Artigo: 'Cala boca, mulher!'

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16/06/2025 13:22 | Atividade Parlamentar | Da Assessoria da deputada Ana Perugini

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"Se ponha no seu lugar" (fala de senador da República à ministra Marina Silva)

As duas falas andam juntas: o homem determina o direito de fala e o lugar. No cotidiano, estas palavras e correspondentes atitudes vêm travestidas de cores e nuances que passam despercebidas.

Lindaura participava de um debate em um sindicato da Grande São Paulo que decidiria os rumos das lutas da categoria. Inscrita para falar, foi advertida, logo de início, por algo não antes endereçado aos companheiros: "seja breve". Sua fala foi interrompida três vezes por apartes e pela recomendação cabal: "concluindo". A líder relatou que nem deu para expor direito a ideia que ela e outras companheiras haviam conversado.

Dirce participava de uma assembleia de associação de moradores na região de Campinas. Ao expor suas ideias sobre arrecadação de recursos, foi interrompida por um diretor informando que, dias antes, havia colocado aquelas mesmas ideias para um grupo. E as repetiu, inclusive os detalhes. As ideias de Dirce haviam sido sequestradas.

Fabiana participava da mesa de um seminário sobre a endometriose na região de Araçatuba. A participação de um diretor de orçamento público notabilizou-se por explicar às mulheres presentes a sintomatologia da enfermidade. Em detalhes, o Sr. Palestrinha explicava e orientava as mulheres, "ignorantes".

Três fatos que demonstram o machismo líquido e certo, que passam despercebidos no dia a dia:

O primeiro descreve a interrupção desnecessária de uma mulher, impedindo o desenvolvimento e a conclusão de seu discurso. O objetivo é desconsiderar o que ela está falando, provocando um impedimento do direito de fala.

O segundo relata o roubo de ideias como se aquelas fossem dele, uma apropriação indevida trazendo o crédito para o seu âmbito pessoal. As ideias das mulheres são negadas e relegadas ao lugar de silenciamento.

O terceiro apresenta o homem explicando algo a mulher, como se ela não conhecesse o assunto. É pedante e detalhista na explicação por entender que elas "não têm capacidade" própria de entendimento. Como a mulher é menos inteligente, precisa de uma explicação mais simples e redundante. O tom da voz e os gestos podem dar dimensão à inferioridade das ouvintes.

O macho interruptor, o sequestrador de ideais e o "palestrinha", em maior ou menor proporção, compõem um comportamento que passa despercebido no dia a dia. Os três comportamentos têm em comum a promoção a desigualdade de gênero, o desestímulo à fala e a desvalorização do conhecimento das mulheres. Um modelo sutil de violência de gênero e de mandar calar.

O comportamento do machismo dissimulado perpassa tempos e fronteiras. Ele ocorre nas diversas esferas da vida pública e muito na política.

Em 18 de agosto de 2014, o apresentador do Jornal Nacional, William Bonner, interrompeu a candidata Dilma Rousseff 21 vezes em 15 minutos, ou seja, uma interrupção a cada 43 segundos. Os bastidores do impeachment estavam sendo preparados. A misoginia foi o seu pano de fundo, presenciei isto como parlamentar. Em 2016, em um debate entre os presidenciáveis nos Estados Unidos, constatou-se que Hillary Clinton foi interrompida 51 vezes por Donald Trump durante seu tempo de fala. Estas atitudes de silenciamento são desincentivos "naturais" à representação política feminina.

Não são frescuras ou exagero! São manifestações sutis do machismo. No entanto, por que isto acontece?

Segundo reportagem da BBC News, um estudo realizado em 2014 na Universidade de George Washington (EUA) e liderado por Adrienne Hancock, pesquisadora de comunicação e gênero, mostrou que mulheres são duas vezes mais interrompidas que homens em conversas neutras. A pesquisa mostrou, também, que mulheres são mais interrompidas por outras mulheres, quando falavam com uma interlocutora, elas interrompiam até 2,9 vezes. Mas mulheres só interrompiam homens em média apenas uma vez.

O cientista político e pesquisador Christopher Karpowitz, da Universidade Brigham Young (EUA), identificou um outro aspecto: em situações de trabalho, além de sofrerem interrupções, as mulheres falam menos. Segundo a pesquisa "Desigualdade de Gênero em Participações Deliberativas" realizada em 2012, os homens falam durante 75% do tempo em discussões de trabalho.

Os fatos e estudos refletem a ideia de que as mulheres valem socialmente e culturalmente menos do que os homens, ou seja, a estrutura milenar do patriarcado permanece: a hierarquização. Os homens são socializados para dominar e as mulheres para serem dominadas. Na perspectiva do machismo estrutural, os homens são formatados para se comportar e agir de forma superior diante da mulher. Tudo ocorre de modo "natural" para que o comportamento seja naturalizado.

No livro "Microfísica do Poder", Michel Foucault analisa que o poder não está vinculado diretamente a pessoas (governantes) ou às instituições (o estado) apenas, mas está presente em todas as relações humanas. Se estabelece em "micropoderes", em escalas e relações pequenas no dia a dia. Deste modo, a sociedade disciplina o corpo humano, através de regras e até mesmo vestimentas. Nas comunidades, a influência dos líderes e as normas disciplinam a convivência. Nas escolas, nas igrejas e nas empresas, as regras exercem controle sobre o comportamento das pessoas. Logo, segundo Foucault, a relação entre homem e mulher na sociedade está plasmada por uma relação de poder. Poder de quem manda e de quem obedece, de quem fala e de quem escuta.

A filósofa Marilena Chauí faz um resumo de seu livro publicado em 1997 sob o título "Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas": "não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância". A divisão de classe é sobredeterminada pela divisão entre os competentes, aqueles que sabem e proferem discursos e os incompetentes, aqueles que não sabem e que apenas executam ordens. A linguagem é institucionalmente autorizada e fundada na hierarquização. Existe a competência do gênero masculino que inclusive pode nomear o mundo real, definir e dar significado às coisas.

Nossa sociedade e família patriarcais são fortemente hierarquizadas. As suas diferenças são transformadas em desigualdades. Desigualdade que reforça a inferioridade "natural" das mulheres e que desemboca no cerceamento da fala e na naturalização da violência. Este autoritarismo social se espalha no trabalho, nas igrejas, nas escolas, nas ruas e até no Senado Federal. Está interiorizado na fala do "se ponha no seu lugar" pois o homem conhece o seu lugar hierárquico.

Em maio de 2025, a ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva, foi instada a "colocar-se no seu lugar". Por quê? Não foi um acidente do senador. A mulher do Acre, negra, com saúde debilitada devido à contaminação de mercúrio, é uma defensora intransigente das florestas e do povo que lá vive.

A ex-seringueira, trabalhou como empregada doméstica, foi vereadora, deputada estadual, federal e senadora. Foi ainda ministra do Meio Ambiente de 2003 a 2008 e possui um reconhecimento internacional ímpar. Em 2004, foi considerada pela revista Time, uma das 100 personalidades mais influentes no mundo. Marina incomoda a elite do atraso e tem o seu lugar de palavras altivas e coragem política.

Marina existe e resiste.

Para a professora Djamila Ribeiro, "o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas poder existir". Assim, para existir é preciso romper com o regime do discurso competente, romper com o silêncio instituído e falar da dignidade e da igualdade de fato.

O direito de fala é um bem comum, fundamento basilar da cidadania e da democracia. Enquanto houver mulheres silenciadas, resistiremos e existiremos.


alesp